quarta-feira, 9 de junho de 2010

Labuta - último tratamento

Labuta

Ao abrir os olhos, era ainda noite. Mas o dia já começava. Na casa silenciosa, os sinais do ontem não tão distante: desordem na sala, pratos do jantar, poeira do chão de terra que entrara pela janela. Resolveria à noite.

Saiu de casa agasalhada e sentou-se no lugar de sempre da van. Viajou calada, meio-adormecida, meio-já-sem-sono. O sol raiou dentro do ônibus para onde correu ao chegar no terminal, mas não conseguiu lugar para se sentar. Devia ter vindo na van das quatro, pensou.

A dor nas pernas era sua companheira de viagem. As pernas, festejadas anos atrás no bar onde ia beber e dançar. As pernas, que enganchou nas do ex-marido naquela primeira dança, e só largou quando a polícia veio buscá-lo, numa madrugada em que dormiam abraçados.

Chegou suada e pontual ao edifício garboso, o sol já alto. O porteiro lavava a calçada sem molhar o uniforme. Deram-se bom dia, contaram as novidades, já velhos conhecidos de toda sexta-feira. Comentaram que a chuva viria no domingo e que o tomate subiu que foi uma beleza. Ele contou que o morador do 703 sofrera um enfarte na noite de terça, mas a ambulância, graças a Deus, chegara a tempo. Já havia saído da UTI, contara o genro que foi buscar algumas roupas no apartamento, e voltaria para casa no sábado à tarde.

Ela contou que desovaram um corpo na sua calçada na quinta de madrugada. O terceiro, desde que o comando mudou. Os vizinhos disseram que era um rapaz da rua de cima, mas ela não quis conferir corpo nenhum, nem deixou os filhos pequenos verem aquela tristeza.

Ele pediu desculpas pela indiscrição e perguntou o que era aquele troço no seu pescoço, que ela estava andando feito um robô. Ela disse que o médico do posto mandou usar, pela dor nas costas. Custou doze reais, veja que prejuízo! E indicou que ela fosse também ao médico dos nervos. Ela foi, obediente, no dia seguinte. Era jovenzinho, esse outro doutor, mas muito atencioso. Passou-lhe um remédio que dava um sono doido o dia inteiro e disse que ela deveria ir para a cama às nove da noite, para deixar de se sentir tão nervosa. Ela teve até vontade de rir, imagine, com tanta coisa para fazer quando chegava em casa... Mas se controlou, para o rapaz não pensar que era deboche. E agora tinha que subir, que a conversa estava boa, mas já ia dar sete e meia.

A patroa dormia na cama de casal, sob o edredom branco que ela alvejou. Só os passarinhos lá fora de barulho no apartamento, e o dia claro entrando pelo voile branco. Fez as coisas de sempre: roupa do varal, pia de pratos, comida estragada na geladeira, jornais da semana espalhados pela sala, ferro esquentando mal, mas não adiantava avisar. Quando já lavava o banheiro dos fundos, ouviu lá de dentro: “Nalva, é você?”.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

ensaio de coragem



raro atalho beleza caminho deleite escolha

resvalo fecundo gorjeio húmus início jornada
rito longevo mirante norma omisso progresso


rota queixume ruela senda tropeço utopia
rumor vale xeque-mate zanzando aragem bússola
rajada carona descalço errante fileira garoa
resquício herança intenso janela lugar milagre



rijo náusea origem pedestre quebrada risível

romance sobrado trajeto uterino viagem xará

rua zona arboredo barragem convite distante

raio estrada finito gasoso hedono insano jacente


remendo liberto mosaico nunca oxente ponte

riacho quimera relento saída tesouro umbigo

roteiro vestígio xongas zen amigo beleza

ruína calçada diário esquina ferida gigante


razão horário insenso jacobina lama memória

retina ninguém oblíquo percurso quadro repouso

ritmo silêncio traçado uterino vereda xangô

rochedo ziguezague amor barranco curva destino

ruído extenso final gaiola hipérbole imagem


ramagem jasmim-da-noite loucura marasmo navio opaco

repouso passagem quebranto rotina sensato travessa


rima usufruto vestígio xodó zelosa.

domingo, 9 de maio de 2010

Cidadania à brasileira em tempo presente


ordem

eu me assombro
tu te estarreces
ele se exalta
nós nos queixamos
vós vos ensurdeceis
eles se lixam


progresso

eu observo
tu percebes
ele se cala
nós nos resignamos
vós vos acomodais
eles agradecem


amém

eu me distancio
tu te recolhes
ele se distrai
nós nos entretemos
vós vos abstendes
eles perduram


Bandeira estilizada: fonte

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Imensa Suely

Um dia desses, sem procurar nem esperar por surpresas, ouvi o novo CD de Suely Mesquita, delicadamente chamado de Microswing.

Soube, então, que Suely, além de intérprete, é também compositora e preparadora vocal.

Selecionei três faixas do CD para compartilhar aqui, duas delas com vídeo e letra. Mas todas podem ser ouvidas no site da artista.

Bom deleite!

imenso
suely mesquita e zélia duncan

gosto imenso
do texto e do subtexto
dos seus bilhetes pra mim
gosto imenso
do som que eu penso quando leio
os seus bilhetes pra mim

gosto imenso quando te leio
furtivamente em papéis rasgados
gosto imenso
de achar seus recados
excitantemente colocados entre
as minhas roupas
aquelas mais usadas
as minhas roupas gastas
de tanto abraçar você

gosto, aposto e me visto
nas tuas palavras
gosto, aposto e me visto
nas tuas palavras, as tuas palavras, as tuas palavras, as tuas palavras...
gosto imenso


longe
suely mesquita e zeca baleiro

sinal de saúde é sentir saudade
sinal de saúde é sentir saudade
quando o choro rola
pela noite afora
quando vai embora
alguém
quando a gente perde
e parece tarde
e a dor faz alarde
além
quando o tempo urge
quando a fera ruge
quando já vai longe um bem
mundo fica grande
e onde quer que eu ande
me pergunto onde? quem?

sinal de saúde é sentir saudade
sinal de saúde é sentir saudade


qualquer lugar
suely mesquita

vamos nos encontrar no metrô
na porta do trem às dez pras seis
confundidos no rush
com outros passantes no meio da rua
sem ninguém nos ver
ou então vamos marcar o nosso encontro
no supermercado
eu empurro o meu carrinho
você vai ao lado
empilhando produtos que não vamos comprar
só pra disfarçar
pode ser também no posto de gasolina
loja de conveniência
muito justo esse nome
pra quem quer salvar as aparências

metrô, supermercado, posto,
fila de banco
ponto de ônibus, sala de espera
do dentista
exame de vista pra renovar
carteira de motorista
reunião de condomínio
centro da cidade,
baile da terceira idade
engarrafamento, prova de vestibular
qualquer lugar
é bom pra te encontrar

sábado, 6 de março de 2010

Não dá pra não falar deles...

Sei que os três já até saíram de cartaz e muitos de vocês já os viram. Mas outros, ainda não. E é sempre válido divulgar os - excelentes - documentários brasileiros!


Pachamama
, do diretor Erik Rocha - trailer (fonte: youtube)


O homem que engarrafava nuvens,
do diretor Lírio Ferreira, sobre o compositor Humberto Teixeira, o Doutor do Baião - trailer (fonte: youtube)

p.s.: et un extrait du documentaire dans lequel Lénine chante un des classiques de ce compositeur: Qui nem jiló


Só dez por cento é mentira
, do diretor Pedro Cezar, sobre o poeta Manoel de Barros - trailer (fonte: youtube)

terça-feira, 2 de março de 2010

Abordagem, no mínimo, interessante...

Fonte: Revista Marie Claire

Homens fiéis teriam QI mais alto e seriam mais evoluídos, diz estudo

Um estudo publicado na revista “Social Psychology Quarterly”, parece ligar homens fiéis às suas parceiras a níveis mais altos de QI que os que traem suas mulheres e namoradas. O estudo foi conduzido pelo pscicólogo especializado em comportamento de gênero, casamento e poligamia Satoshi Kanazawa, da London School of Economics and Political Science.

Segundo a agência de notícias BBC, Kanazawa disse que “homens inteligentes estão mais propensos a valorizar a exclusividade sexual do que homens menos inteligentes”. O cientista chegou a essa conclusão depois de comparar o quoficiente de inteligência (QI) de milhares de adultos e adolescentes dos Estados Unidos a suas atitudes.

Depois de analisar os dados da National Longitudinal Study of Adolescent Health e da General Social Surveys, Kanazawa encontrou também ligações entre o QI e o posicionamento político e a religião. O ateísmo e o liberalismo político foram apontados na pesquisa como atitudes de homens mais inteligentes.

O pesquisador disse à BBC que a fidelidade é um sinal de evolução da espécie. O homem fiel seria diferente do padrão “relativamente polígamo” que o gênero teve ao longo da História. Não trair seria, segundo a teoria de Kanazawa, uma novidade evolucionária a que os mais inteligentes estariam aderindo. Entre as mulheres, no entanto, essa conexão entre QI mais elevado e exclusividade sexual não acontece, segundo o estudo.

Realidade não é tão simples, diz psiquiatra

Para o psiquiatra Luiz Sperry Cezar, pesquisador do Hospital das Clínicas de São Paulo, no entanto, os resultados devem ser vistos com cautela. “O estudo não trata de questões de fidelidade no sentido estrito e 81% dos entrevistados nunca haviam sido casados”, diz. “Dizer que o QI é um fator determinante em relação a fidelidade é um exagero. Diversas outras questões referentes a personalidade são tão - ou mais - importantes que isso: impulsividade, tendência a busca pela novidade, capacidade de assumir riscos”, afirma.

Segundo o psiquiatra, não é possível afirmar que "é inteligente ser fiel" a partir dos dados coletados por Kanazawa, pois o método utilizado não visaria abordar esse tema com clareza. Na “Social Psychology Quarterly”, o artigo foi publicado com o título “Why liberals and atheists are more intelligent” (Por que liberais e ateus são mais inteligentes).

segunda-feira, 1 de março de 2010

Dois titãs do samba, duas homenagens e uma despedida

O samba dominou a trilha sonora da semana passada: escrevendo, a quatro mãos, um roteiro de rádio sobre Martinho da Vila, a convite de Eulícia (obrigada, querida!), e a triste notícia do falecimento de Walter Alfaiate.

Encontrei esses dois vídeos bem bacanas, para homenageá-los:

Alfaiate, com toda aquela elegância, cantando Sacode Carola, acompanhado do grupo Sururu na Roda:

Fonte: YouTube

E Martinho, com a deliciosa Canta, canta, minha gente:


Fonte: YouTube

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Precisão

Após dias de pesquisa sobre Martinho da Vila, começamos, Eulícia e eu, a produzir os textos. Até que ela lembrou da frase certa de que precisávamos:

"Escrever é cortar palavras" - Oscar Wilde

é (só e tudo) isso!

O segredo dos seus olhos

El secreto de sus ojos - o vi em Buenos Aires, no ano passado, com Pauli.

Linda tarde, linda película, la mejor compañía!

Se há uma coisa que nossos irmãos argentinos fazem super bem, é cinema! (pero el fútbol es otra historia, Cris, no te hagas el piola!)

Concorrendo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro - torçamos no dia 07 de março!

O páreo está duro: o peruano A teta assustada também é uma obra-prima, pura beleza e sensibilidade ( e "só" ganhou o Urso de Ouro em Berlim ano passado...). Fita branca, da Áustria, é um soco no estômago, daqueles que fazem a dor se espalhar lenta e irreversivelmente (lembra, Rogério?). Não vi ainda: o francês Um profeta, que acabou de ganhar o Cesar, prêmio daquele país. E o israelense Ajami, que parece ser o favorito, pelo teor politicamente correto.

Vamos, Argentina todavía!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Nós, Hipácias.

Texto de Frei Betto, enviado pela amiga Cristina Sales.


A DIFÍCIL ARTE DE SER MULHER

Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi Ágora, direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em “O jardineiro fiel”, dirigido por Fernando Meirelles.

Em “Ágora” ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro.

Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.

Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.

O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina.

Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes.

Onde há oferta de produtos – TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em telenovelas – o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado. É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.

Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, “Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem”. Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.

Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: “gata”, “vaca”, “avião”, “melancia” etc.

Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos).

Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a mulher-objeto (de consumo).

Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher.

No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.

Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade?

Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjetividade.


Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2010

A Pasárgada da cada um

Uma singela homenagem a meu querido tio Niltinho,
falecido ontem, que amava Salinas da Margarida.














Salinas da Margarida é um município localizado ao sul do Recôncavo Baiano.

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

Clarice, simplesmente

A peça "Simplesmente eu, Clarice Lispector" é maravilhosa. Um delicado trabalho de pesquisa e interpretação de Beth Goulart.


Comovente, o mergulho dado pela atriz. Um projeto em que o caráter pessoal e profissional se misturam e complementam.

No final do espetáculo, Beth ainda presenteou o público com belas palavras sobre a importância da obra de Clarice no despertar da sensibilidade, para se enxergar melhor o próximo. "O coletivo começa no individual", disse ela, "se cada um faz a sua parte, é o primeiro passo para se construir um mundo melhor".

Como bem observou a amiga Mônica Alvarenga, que estava comigo, foi muito bacana ver a atriz resgatando e exercendo o papel do artista, de se posicionar diante da vida e transmitir mensagens e valores a partir da sua visão pessoal - e sensível - do mundo.

Em cartaz até março, no Teatro do Sesi:
Rua Graça Aranha, no. 1, Centro - Rio - RJ
Telefone: 2563-4163
Ingresso: R$ 40,00

domingo, 7 de fevereiro de 2010

Fanatisme














Poema musicado de Florbela Espanca,
na voz de Fagner e Zeca Baleiro:

Fonte: Youtube

Fanatismo

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver!
Não és sequer a razão do meu viver,
Pois que tu és já toda a minha vida!

Não vejo nada assim enlouquecida ...
Passo no mundo, meu Amor, a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!

"Tudo no mundo é frágil, tudo passa ..."
Quando me dizem isto, toda a graça
Duma boca divina fala em mim!

E, olhos postos em ti, digo de rastros :
"Ah ! Podem voar mundos, morrer astros,
Que tu és como Deus: Princípio e Fim! ..."

Livro de Soror Saudade (1923)


Fanatisme

Mon âme, de te rêver, marche perdue.
Mes yeux marchent aveugles de te voir!
Tu n’es même pas la raison du mon vivre,
Puisque tu es déjà toute ma vie !

Je ne vois rien ainsi déraisonnée…
Je passe dans le monde, mon amour, à lire
Dans le livre mystérieux de ton être
La même histoire tant de fois lue !

« Dans le monde tout est fragile, tout passe… »
Quand on me dit cela, toute la grâce
D’une bouche divine parle de moi !

Et, yeux posés sur toi, je dis en me traînant :
« Ah ! Des mondes pourront voler, les astres mourir,
Que tu es comme Dieu. Principe et Fin !… »

Florbela Espanca (in Les Amoureux)
Traduit par Rosario Duarte da Costa


sábado, 6 de fevereiro de 2010

O muro caiu há 21 anos, mas o sonho precisa cair também?


Excelente reflexão sobre o assunto, no artigo de SLAVOJ ZIZEK, publicado no site da Revista Piauí.


Trecho:

"Será que o realismo capitalista é a única resposta para a utopia socialista? O que se seguiu à queda do Muro foi mesmo a era da maturidade capitalista, o abandono de todas as utopias? Será que essa época também não teve uma utopia própria? Novembro de 1989 marcou o início dos "felizes anos 90", o utópico "fim da história" de Francis Fukuyama. Ele anunciou que a democracia liberal havia vencido, que o advento de uma comunidade mundial global e liberal estava por acontecer, e que os obstáculos que se interpunham a esse final feliz eram apenas contingentes (bolsões de resistência onde os dirigentes locais ainda não enxergavam que a hora deles havia acabado).

Em contrapartida, o 11 de Setembro marcou o fim simbólico dos "felizes anos 90". Assinalou o começo de nossa era atual, em que novos muros estão se erguendo por toda parte, entre Israel e a Cisjordânia, em torno da União Europeia, na fronteira dos Estados Unidos com o México - mas também dentro dos próprios países".

Cantáteis - cantos elegíacos de amozade



Um vez, fui a um festival de trovadores e repentistas lááááá no sertão do Ceará (eita mulher rodada, cês hão de pensar!). O evento acontecia entre os municípios de Quixadá, Senador Pompeu e Quixeramobim sim, esse último é aquele da música de Chico Buarque.

Pois lá, assisti o meu primeiro show de Chico - mas de um Chico outro, o César, por quem eu já nutria uma paixão danada. E lá, também, conheci esse delicioso livro de poemas escrito por ele.

Segundo o próprio autor, ele foi levado por "esse sentimento híbrido (amozade) e que muitas vezes julgamos formado por partes que se negam: o amor e a amizade".

Mas o encanto da obra, que desde então repousa no meu criado-mudo devidamente autografada, vai muito além da sua musa inspiradora e dos sentimentos que os unia - o que se lê, como bem explicam os editores, "é uma experiência de linguagem que ultrapassa as fronteiras dos idiomas, das culturas, do nacional, do popular, do erudito, dos gêneros, das identidades (...)".

CC passeia por várias referências que coabitam a sua alma de artista inquieto, versátil, atento, aberto, visceral, antenado, contemporâneo e tradicional, pop e rural, fragmentado e completo.

Ele transita pela Literatura de Cordel, pela Poesia Concreta, pelo Cinema Novo, por João Cabral de Melo Neto, por Ezra Pound, por Dante Alighieri; por São Paulo, pela África, por Atenas; pelo amor, pelo medo, pela loucura, pela paixão desenfreada... Eis alguns dos versos elegíacos:

1.
seu poeta preferido
bem antes de ser ferido
já era ferido antes
não visitou as bacantes
as nereidas e as ninfas
quis beber de sua linfa
esperou e não morreu
esse poeta sou eu
de lira desgovernada
deliro musa amada
órfão bisneto de orfeu


2.
eu pra cantar não vacilo
digo isso
digo aquilo
digo tudo que se disse
digo veneza recife
fortaleza que se abre
quero que o mundo se acabe
se não disser o que sinto
digo a verdade, minto
vertente me arrebata
minha voz é serenata
labareda e labirinto

17.
você quer me deixar louca?
pergunta com a voz rouca
numa noite de setembro
de noites assim me lembro
o seu, o meu, a foz, o vau
bom só-só e nenhum mal
kama sutra e dicionário
no lusco-fusco binários
rumor amoroso serve
para desatar a verve
disparar o calendário

28.
nem parnaso nem concreto
o amor analfabeto
não lê poemas de amor
tanto faz lápis de cor
ou computador que escreva
a linguagem mais longeva
que o amor reconhece
é o próprio amor, sua prece
é a pane do motor
é o silêncio do tambor
é a bomba da quermesse


31.
digo em português bem claro
o clero vai pagar caro
por pisar no meu jardim
uma moça deu pra mim
a flor de lótus carnada
carnuda e petalada
com beleza depistilo
beija-flor beijei aquilo
fui eu próprio fecundado
agora verbo cancarnado
batizado no seu nilo



34.
sêneca não sou - eu chico
rio tão nordestinico
que tateia e se estatela
no pé de sirigoela
plantado pelo cupido
performer impermitido
out-sider das baixadas
se ninfas apaixonadas
vêm uivar na minha porta
uso a palavra que corta:
ela tudo - vocês nadas


39.
o ó do borogodó
as tetas do status quo
as preces do dalai lama
calai os gritos da fama
que rosna numa gaiola
gravidez de craviola
dê à luz um bandolim
quero essa musassim
fauna com dente de flora
mas se um dia for embora
será quixeramobim


CÉSAR, Chico. Cantáteis: cantos elegíacos de amozade. Ed. Garamond. Rio de Janeiro, 2005.

sábado, 23 de janeiro de 2010

La Poésie: notre langue commune


On Frappe
Jaques Prévert

Qui est là
Personne
C'est simplement mon coeur qui bat
Qui bat très fort
A cause de toi
Mais dehors
La petite main de bronze sur la porte de bois
Ne bouge pas
Ne remue pas
Ne remue pas seulement le petit bout du doigt.


Conte de fée
Robert Desnos

Il était un grand nombre de fois
Un homme qui aimait une femme
Il était un grand nombre de fois
Une femme qui aimait un homme
Il était un grand nombre de fois
Une femme et un homme
Qui n’aimaient pas celui et celle qui les aimaient.

Il était un fois
Une seule fois peut-être
Un homme et une femme qui s’aimaient.


Lembrete
Carlos Drummond de Andrade

Se procurar bem, você acaba encontrando
não a explicação (duvidosa) da vida,
mas a poesia (inexplicável) da vida.


Foto: Lagoa Rodrigo de Freitas, Rio de Janeiro, Brasil (fonte: www.nazonasultem.com.br/turismo?id=17)

Os contos, as fadas e a distância entre eles

“Conto infantil que narra encantamentos e fatos maravilhosos com a intervenção de fadas (boas ou más)”.
Fonte: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa




Os contos de fadas sempre me interessaram por como vêm sendo trabalhados, gerações a fio, os arquétipos humanos, tanto femininos, quanto masculinos: princesas frágeis, ingênuas, solitárias e indefesas; príncipes valentes, aventureiros e salvadores nunca me convenceram muito. Aos 10 anos de idade, mais ou menos, conheci uma livro que desconstruía toda essa história:

Procurando firme, de Ruth Rocha, que tenho autografado e guardado até hoje.

A história começa, como tantas outras, com uma princesa que vive em um reino encantado, cujo destino é ser desposada por um príncipe, que virá buscá-la para que sejam felizes para sempre. Linda Flor é adestrada para ser uma exímia dona de casa: tem aulas de bordado, de culinária, de piano, entre outras prendas e habilidades muito valorizadas pelos pais. É muito branquinha, tem cabelos loiros e longuíssimos, veste-se com delicados vestidos cheios de babados e fru-frus. O irmão dela, ao contrário, passa a vida sendo preparado para sair pelo mundo buscando o seu caminho, com aulas de esgrima, natação, idiomas... E um dia, finalmente, chega a hora da partida e ele sai por aí, "procurando não se sabe o quê, mas procurando firme".

Linda Flor, então, resolve radicalizar (e é aí que a história começa a pegar fogo!): corta o cabelo bem curto, troca os vestidos pela calça comprida, começa a ter aulas com os professores do irmão e já não recebe mais os pretendentes entediantes que chegavam para "salvá-la". Os pais entram em choque, a fofoca rola solta entre os súditose a princesinha sacode o pacato reino com seu novo comportamento! E o que acontece a partir daí, só lendo o livro. Pra mim, foi um uma viagem irreversível!

Alguns anos depois, conheci o fantástico e super premiado Bisa Bia, Bisa Bel, de Ana Maria Machado, que teve 500 mil exemplares vendidos. Também o tenho autografado!

Conta a história da menina Isabel, que um dia encontra uma foto da sua bisavó Beatriz. A partir daí, a Bisa(vó) Bia começa a viver dentro da Bisa(neta) Bel e as duas passam a trocar idéias e experiências, com uma intensa descoberta das diferenças provadas pelo choque de gerações entre elas. Um comovente e lúdico exercício de reflexão da alma feminina.

Recentemente, li sobre um livro lançado na Espanha chamado La Cenicienta que no queria comer perdices e fiquei encantada com a sua proposta de desconstruir a imagem das grandes "musas" dos contos de fadas e suas perfeições inverossímeis, trazendo a "versão século XXI - volta por cima" dessas personagens tão estigmatizadas:

  • Cinderela se revolta, vira vegetariana, sai do baile depois da meia-noite e não quer mais saber do príncipe encantado;
  • Branca de Neve sofre de depressão e vive às custas de Prozac, mas consegue superar o problema e resolve se bronzear para ficar morena e
  • a Bela Adormecida resolve acordar sozinha e ir cuidar da vida, que ela tem mais o que fazer.

O livro se tornou um dos maiores fenômenos de vendas da Espanha nas últimas semanas e as autoras, a escritora Nunila López Salamero e a desenhista Myriam Cameros Sierra, o dedicam a "todas as mulheres valentes que querem mudar de vida".

O lançamento no Brasil está previsto para 2010, PURA VIDA!

Presenteemos as nossas meninas - filhas, sobrinhas, afilhadas, netas, irmãs, vizinhas - com este sopro de valentia e poder de transformação das suas vidas. E, por que não?, também os nossos futuros varões, para que todos sejam felizes, agora sim, para sempre.


A imagem feminina na arte


500 anos de história da Arte Ocidental contada através da imagem feminina.

O vídeo, enviado pelo amigo Marcelo Mendonça, foi criado por Phillip Scott Johnson. Postado no You Tube, foi visto por, aproximadamente, 10 milhões de visitantes e gerou milhares de comentários.

A trilha sonora é a Suíte para Violoncelo no. 1, de Johann Sebastian Bach, executada por Yo-Yo Ma.

Bravo!
Imagem: O nascimento de Venus, de Sandro Boticelli.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2010

Horror



"Pense no Haiti, reze pelo Haiti".

Mais do que nunca, Caê.

O assunto, sim, é o metrô!


Hoje peguei o metrô na direção zona sul/zona norte, na estação Cantagalo, às 18h40, e presenciei, mais uma vez, o caos.

Ele já chegou cheio na Cantagalo, segunda estação da linha 1 nesse sentido, vindo da recém-inaugurada General Osório. Quando parou na Siqueira Campos, a terceira, deu-se a superlotação: uma multidão vinda da praia ou do trabalho invadiu os vagões.

E a situação só piorou nas estações seguintes. Estávamos todos amontoados, sufocados pelo calor, assustados: mães com crianças de colo, senhoras, deficientes, homens, mulheres, adolescentes.

Saltei no Largo do Machado, após enorme dificuldade de chegar à porta de saída. Penso nos que seguiram viagem, em meio àquela situação absurda e perigosa.

O que está acontecendo, afinal? Por que o Metrô, há meses, não atende à demanda de passageiros? Atrasos, superlotação, vagões e estações sem ar condicionado viraram rotina.

Que órgão deve fiscalizar esse desserviço, prestado pela empresa licitada para operar um transporte de massa fundamental para a população? E por que não fiscaliza? Se fiscaliza, por que não multa? Se multa, por que não se recolve? Os termos da licitação estão sendo obedecidos? Por que não há uma política de comunicação séria e sistemática do poder público e da empresa, direcionada aos usuários, esclarecendo o porquê de tamanha confusão? Até quando a situação vai perdurar?

E a população, como sempre, passiva, não vai se manifestar? Quantos aderiram à proposta de boicote ao metrô por um dia, em dezembro passado?

Eu aderi, mas soube, no dia seguinte, que fui uma das poucas.

Atenção:

  1. A situação fica fora de controle com os vagões superlotados.
  2. Quem viaja no sentido zona sul/zona norte enfrenta essa situação diariamente, há muito tempo, em vários horários.
  3. O sentido zona norte/zona sul também está caótico, há tempos.
  4. A multidão não pensa. Qualquer dia, acontecerá uma tragédia.
  5. Não é justo com a população, que paga impostos, esse tipo de tratamento.

Eu estou louca, ou isso não é óbvio, ou o legal é mesmo deixar pra lá e curtir a vida?

E pra não dizer que não falei de verão...

O assunto não é o calor escaldante, nem o metrô cheio e atrasado.

É o seguinte: nada como tomar banho de mar no Arpoador, ao pôr-do-sol, e ficar atéééééé mais tarde.

Mar tranquilo e morno, céu estrelado, pessoas despreocupadas e serenas conversando na areia ou na água... A vista dos Dois Irmãos, do Hotel Marina já aceso ("não é por nós dois, nem lembra o nosso amor")... A vida pode ser boa. E essa cidade, definitivamente, é ma-ra-vi-lho-sa. Aos que estão aqui: aproveitem!

Aroma da memória

Eu sei que estamos em janeiro e os assuntos são outros. Mas hoje fui pega de surpresa: no supermercado, feito esta manhã às pressas, me encontrei com o cheiro de uma manga espada.

Eu sei que junho ainda demora. Mas a saudade evocada por aquele aroma é atemporal. Lembrei, então, desse poema bem despretensioso, escrito no São João passado.


Os sentidos juninos
(a tio tinoco, tia lucy e às mangueiras do quintal da minha infância mais feliz)

a minha lembrança
tem cheiro de pólvora
estalo de fogueira
gosto salgado de amendoim cozido
maciez de vestido quadriculado
e cor de noite estrelada.


tem primos correndo em alvoroço
metade de laranja-doce-descascada
brilho de chuvinha que acaba rápido
perfume de canjica lá na cozinha
e chapéu de trancinha coçando na cabeça.


tem susto de bomba estourando de repente
batom vermelho cremoso na boca e na bochecha
pedaço grande de bolo de aipim
alegria suada, pressa de viver tudo
e aperto da mão do primo na quadrilha.


tem fole da sanfona apertando o peito quando a gente lembra
fogos que explodem cada vez mais longe de onde se está
silêncio de junho parecendo um outubro qualquer
sabor que não se encontra onde a gente vai morar
e estrelas com outro brilho-apagado-qualquer.


tem saudade demais aqui dentro...

20.06.2009

Vamos mudar de assunto?

Com a devida e generosa autorização do autor, o jornalista Arnaldo Bloch, publico aqui no blog, em segunda mão (a primeira, foi na sua coluna dominical, no Segundo Caderno d’O Globo, 09/01/10), uma reflexão super contundente sobre a lenda urbana “ponto G”.

Ampliemos os horizontes, deixemos de papo furado. O céu é o limite e o verdadeiro X da questão está "localizado" para além da dimensão fisiológica - ele é polidimensional! E, ao mesmo tempo, de tão simples, é visível a olho nu.

Obrigada, Bloch.


O X do PONTO G

O gozo masculino é melhor quando se ‘feminiza’

Por Arnaldo Bloch

Num episódio clássico da série que leva seu nome, o filósofo Jerry Seinfeld, num daqueles momentos de stand-up comedy, compara o gozo feminino (no sentido da desejável “tarefa” em geral masculina de proporcioná-lo) à Bat-Caverna (o esconderijo de Batman), dizendo mais ou menos o seguinte:

— Ninguém sabe onde fica. E, se a gente vai lá, não tem a mínima idéia de como chegou.

Claro que não é bem assim. Não é nada assim. Em primeiro lugar, o orgasmo feminino não depende só de quem proporciona, mas do estado de espírito da mulher, de sua personalidade, de sua relação com o próprio corpo, do quanto ela se toca, e de uma infinidade de aspectos de sua subjetividade.

Aí entra (!) o homem lato sensu: claro que são fatores importantes sua habilidade, as técnicas, os encaixes, seus conhecimentos anatômicos, sua sensibilidade, sua paciência, suas características, em face às preferências da parceira. Mas a Mãe Natureza é misteriosa e generosa: em alguns casos (os melhores), a química, por si só, faz maravilhas sem qualquer esforço de uma parte ou de outra, sendo que os detalhes técnicos podem ou não participar da festa, só como uma cereja no embalo do bolo.

Mas num ponto a piada careta e simplificadora de Seinfeld acerta em cheio: o orgasmo feminino é rico, complexo, e sua geografia é um mistério. A ponto de se ter criado o conceito do ponto G como algo que poderia vir para explicar, mas que acabou servindo para confundir. A existência de um ponto “atrás do osso púbico, perto do canal da uretra e acessível através da parede anterior da vagina” como sendo o centro ótimo da estimulação orgástica (trazendo inclusive uma série de benefícios médicos) criou uma espécie de corrida ao ouro, que, no final, se revelou infrutífera: embora muitos e muitas se gabassem de tê-lo encontrado, a coisa sempre esteve mais para história de pescador. Isso não quer dizer, de forma alguma, que o ponto G não exista, como agora um estudo vem preconizar. Ao contrário: o que não existe é uma localização determinada para ele na vastidão da sexualidade feminina. Assim, o fato de o ponto G ser um mito, por paradoxal que pareça, é a prova maior de sua existência!

Ele existe em vários lugares. Um hoje, outro amanhã. Ou ao mesmo tempo, ubíquo e onipresente, em todos os lugares. Ou, creiam, num lugar só e em vários, complementarmente. O gozo feminino é uma onda de energia que percorre todo o corpo, pode durar muito tempo e conduz a um estado de alma posterior elevadíssimo, que transcende o simples desejo de dormir depois do “descarrego”, tão característico do
orgasmo masculino. Este tende a ser descrito como sempre localizado e de curta duração. Ou seja, o ponto G do homem estaria muito mais próximo da definição original: sua localização é conhecida, é o pênis (ou, segundo algumas vozes iogues, outras iogays, a próstata...).

Por isso o homem inveja tanto o orgasmo feminino. Alguns buscam, através de esforços tântricos ou reichianos, a superação. Outros desistem de ver nele algo tão especial, como um amigo meu que, dia desses, veio com essa:

— Arnaldo, tem tantas coisas melhores para se fazer com uma mulher do que gozar!
Quer gozar, vá ao banheiro. Ou seja, para esse meu amigo, gozo-ejaculação. A não ser no banheiro, onde a fantasia bate um bolão... Respondi de bate-pronto:

— Cara, a qualidade do seu orgasmo com mulheres deve estar muito baixa. E vou te dizer: depois que passei dos 30, e, mais ainda, dos 35, o orgasmo passou a ser ao mesmo tempo mais demorado, mais intenso, mais curtido e mais espraiado. Sobe pela espinha, solta o peito, liberta os pensamentos...

— Menos, Arnaldo. Você está descrevendo um orgasmo feminino.

Se é isso, que assim seja. Uns 20 anos atrás, lembro-me de meu pai dizendo coisa semelhante. Que, com a idade, o gozo dele foi melhorando. Talvez seja isso: como a mulher é sempre mais madura que o homem, ela goza melhor. Quando o homem atinge, tardiamente, a maturidade, ganha de presente esse atributo: o gozo com G maiúsculo. Donde se conclui, penso, agora, com meus botões ainda atados, que o ponto G, em toda a sua grandeza e virtualidade, existe para todos, homens e mulheres (heteros ou gays), onde quer que ele esteja, e quando for o momento. O ponto G é único e múltiplo, individual e coletivo, pode estar em dois lugares ao mesmo tempo e sua geografia é mais quântica que newtoniana. E ponto final.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

os melhores desejos para 2010

Peço ao ano-novo
Aos deuses do calendário
Aos orixás das transformações:
Nos livrem do infértil da ninharia
Nos protejam da vaidade burra
Da vaidade "minha" desumana sozinha
Nos livrem da ânsia voraz
Daquilo que ao nos aumentar, nos amesquinha.
A vida não tem ensaio
Mas tem novas chances
Viva a burilação eterna, a possibilidade:
O esmeril dos dissabores!
Abaixo o estéril arrependimento
A duração inútil dos rancores
Um brinde ao que está sempre nas nossas mãos:
A vida inédita pela frente
E a virgindade dos dias que virão!

Elisa Lucinda

O Caim de Saramago

Trecho de "Caim", de Saramago: hilariante, deliciosamente herético, finamente sarcástico, brilhantemente irônico, para o deleite de nós outros, pobres mortais, tão carregados dessa culpa desnecessária!


"(...) Ora, enquanto sobem e não sobem [Abraão e o filho Isaac, este último prestes a ser sacrificado pelo pai, a pedido de Deus], convém saber como isto começou para comprovar uma vez mais que o senhor não é pessoa em quem se possa confiar. Há uns três dias, não mais tarde, tinha ele dito a abraão, pai do rapazito que carrega às costas o molho de lenha, Leva contigo o teu único filho, isaac, a quem tanto queres, vai à região do monte mória e oferece-o em sacrifício a mim sobre um dos montes que eu te indicar. O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede, o que significa que era costume seu, e muito arraigado. O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim. Na manhã seguinte, o desnaturado pai levantou-se cedo para pôr os arreios no burro, preparou a lenha para o fogo do sacrifício e pôs-se a caminho para o lugar que o senhor lhe indicara, levando consigo dois criados e o seu filho isaac. No terceiro dia de viagem, abraão viu ao longe o lugar referido. Disse então aos criados, Fiquem aqui com o burro que eu vou até lá adiante com o menino, para adorarmos o senhor e depois voltamos para junto de vocês. Quer dizer, além de tão filho da puta como o senhor, abraão era um refinado mentiroso, pronto a enganar qualquer um com a sua língua bífida, que, neste caso, segundo o dicionário privado do narrador desta história, significa traiçoeira, pérfida, aleivosa, desleal e outras lindezas semelhantes".
(Saramago, José. Caim: romance. São Paulo, Companhia das Letras, 2009. págs. 78 e79)

E para quem ainda não caiu na real do virtual: ele também tem blog! O Caderno de Saramago

Blogueiros, unidos, jamais serão vencidos!

p.s.1: A polêmica com a Igreja Católica

p.s.2: Crítica do Estadão