quarta-feira, 9 de junho de 2010

Labuta - último tratamento

Labuta

Ao abrir os olhos, era ainda noite. Mas o dia já começava. Na casa silenciosa, os sinais do ontem não tão distante: desordem na sala, pratos do jantar, poeira do chão de terra que entrara pela janela. Resolveria à noite.

Saiu de casa agasalhada e sentou-se no lugar de sempre da van. Viajou calada, meio-adormecida, meio-já-sem-sono. O sol raiou dentro do ônibus para onde correu ao chegar no terminal, mas não conseguiu lugar para se sentar. Devia ter vindo na van das quatro, pensou.

A dor nas pernas era sua companheira de viagem. As pernas, festejadas anos atrás no bar onde ia beber e dançar. As pernas, que enganchou nas do ex-marido naquela primeira dança, e só largou quando a polícia veio buscá-lo, numa madrugada em que dormiam abraçados.

Chegou suada e pontual ao edifício garboso, o sol já alto. O porteiro lavava a calçada sem molhar o uniforme. Deram-se bom dia, contaram as novidades, já velhos conhecidos de toda sexta-feira. Comentaram que a chuva viria no domingo e que o tomate subiu que foi uma beleza. Ele contou que o morador do 703 sofrera um enfarte na noite de terça, mas a ambulância, graças a Deus, chegara a tempo. Já havia saído da UTI, contara o genro que foi buscar algumas roupas no apartamento, e voltaria para casa no sábado à tarde.

Ela contou que desovaram um corpo na sua calçada na quinta de madrugada. O terceiro, desde que o comando mudou. Os vizinhos disseram que era um rapaz da rua de cima, mas ela não quis conferir corpo nenhum, nem deixou os filhos pequenos verem aquela tristeza.

Ele pediu desculpas pela indiscrição e perguntou o que era aquele troço no seu pescoço, que ela estava andando feito um robô. Ela disse que o médico do posto mandou usar, pela dor nas costas. Custou doze reais, veja que prejuízo! E indicou que ela fosse também ao médico dos nervos. Ela foi, obediente, no dia seguinte. Era jovenzinho, esse outro doutor, mas muito atencioso. Passou-lhe um remédio que dava um sono doido o dia inteiro e disse que ela deveria ir para a cama às nove da noite, para deixar de se sentir tão nervosa. Ela teve até vontade de rir, imagine, com tanta coisa para fazer quando chegava em casa... Mas se controlou, para o rapaz não pensar que era deboche. E agora tinha que subir, que a conversa estava boa, mas já ia dar sete e meia.

A patroa dormia na cama de casal, sob o edredom branco que ela alvejou. Só os passarinhos lá fora de barulho no apartamento, e o dia claro entrando pelo voile branco. Fez as coisas de sempre: roupa do varal, pia de pratos, comida estragada na geladeira, jornais da semana espalhados pela sala, ferro esquentando mal, mas não adiantava avisar. Quando já lavava o banheiro dos fundos, ouviu lá de dentro: “Nalva, é você?”.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

ensaio de coragem



raro atalho beleza caminho deleite escolha

resvalo fecundo gorjeio húmus início jornada
rito longevo mirante norma omisso progresso


rota queixume ruela senda tropeço utopia
rumor vale xeque-mate zanzando aragem bússola
rajada carona descalço errante fileira garoa
resquício herança intenso janela lugar milagre



rijo náusea origem pedestre quebrada risível

romance sobrado trajeto uterino viagem xará

rua zona arboredo barragem convite distante

raio estrada finito gasoso hedono insano jacente


remendo liberto mosaico nunca oxente ponte

riacho quimera relento saída tesouro umbigo

roteiro vestígio xongas zen amigo beleza

ruína calçada diário esquina ferida gigante


razão horário insenso jacobina lama memória

retina ninguém oblíquo percurso quadro repouso

ritmo silêncio traçado uterino vereda xangô

rochedo ziguezague amor barranco curva destino

ruído extenso final gaiola hipérbole imagem


ramagem jasmim-da-noite loucura marasmo navio opaco

repouso passagem quebranto rotina sensato travessa


rima usufruto vestígio xodó zelosa.

domingo, 9 de maio de 2010

Cidadania à brasileira em tempo presente


ordem

eu me assombro
tu te estarreces
ele se exalta
nós nos queixamos
vós vos ensurdeceis
eles se lixam


progresso

eu observo
tu percebes
ele se cala
nós nos resignamos
vós vos acomodais
eles agradecem


amém

eu me distancio
tu te recolhes
ele se distrai
nós nos entretemos
vós vos abstendes
eles perduram


Bandeira estilizada: fonte

sexta-feira, 30 de abril de 2010

Imensa Suely

Um dia desses, sem procurar nem esperar por surpresas, ouvi o novo CD de Suely Mesquita, delicadamente chamado de Microswing.

Soube, então, que Suely, além de intérprete, é também compositora e preparadora vocal.

Selecionei três faixas do CD para compartilhar aqui, duas delas com vídeo e letra. Mas todas podem ser ouvidas no site da artista.

Bom deleite!

imenso
suely mesquita e zélia duncan

gosto imenso
do texto e do subtexto
dos seus bilhetes pra mim
gosto imenso
do som que eu penso quando leio
os seus bilhetes pra mim

gosto imenso quando te leio
furtivamente em papéis rasgados
gosto imenso
de achar seus recados
excitantemente colocados entre
as minhas roupas
aquelas mais usadas
as minhas roupas gastas
de tanto abraçar você

gosto, aposto e me visto
nas tuas palavras
gosto, aposto e me visto
nas tuas palavras, as tuas palavras, as tuas palavras, as tuas palavras...
gosto imenso


longe
suely mesquita e zeca baleiro

sinal de saúde é sentir saudade
sinal de saúde é sentir saudade
quando o choro rola
pela noite afora
quando vai embora
alguém
quando a gente perde
e parece tarde
e a dor faz alarde
além
quando o tempo urge
quando a fera ruge
quando já vai longe um bem
mundo fica grande
e onde quer que eu ande
me pergunto onde? quem?

sinal de saúde é sentir saudade
sinal de saúde é sentir saudade


qualquer lugar
suely mesquita

vamos nos encontrar no metrô
na porta do trem às dez pras seis
confundidos no rush
com outros passantes no meio da rua
sem ninguém nos ver
ou então vamos marcar o nosso encontro
no supermercado
eu empurro o meu carrinho
você vai ao lado
empilhando produtos que não vamos comprar
só pra disfarçar
pode ser também no posto de gasolina
loja de conveniência
muito justo esse nome
pra quem quer salvar as aparências

metrô, supermercado, posto,
fila de banco
ponto de ônibus, sala de espera
do dentista
exame de vista pra renovar
carteira de motorista
reunião de condomínio
centro da cidade,
baile da terceira idade
engarrafamento, prova de vestibular
qualquer lugar
é bom pra te encontrar

sábado, 6 de março de 2010

Não dá pra não falar deles...

Sei que os três já até saíram de cartaz e muitos de vocês já os viram. Mas outros, ainda não. E é sempre válido divulgar os - excelentes - documentários brasileiros!


Pachamama
, do diretor Erik Rocha - trailer (fonte: youtube)


O homem que engarrafava nuvens,
do diretor Lírio Ferreira, sobre o compositor Humberto Teixeira, o Doutor do Baião - trailer (fonte: youtube)

p.s.: et un extrait du documentaire dans lequel Lénine chante un des classiques de ce compositeur: Qui nem jiló


Só dez por cento é mentira
, do diretor Pedro Cezar, sobre o poeta Manoel de Barros - trailer (fonte: youtube)

terça-feira, 2 de março de 2010

Abordagem, no mínimo, interessante...

Fonte: Revista Marie Claire

Homens fiéis teriam QI mais alto e seriam mais evoluídos, diz estudo

Um estudo publicado na revista “Social Psychology Quarterly”, parece ligar homens fiéis às suas parceiras a níveis mais altos de QI que os que traem suas mulheres e namoradas. O estudo foi conduzido pelo pscicólogo especializado em comportamento de gênero, casamento e poligamia Satoshi Kanazawa, da London School of Economics and Political Science.

Segundo a agência de notícias BBC, Kanazawa disse que “homens inteligentes estão mais propensos a valorizar a exclusividade sexual do que homens menos inteligentes”. O cientista chegou a essa conclusão depois de comparar o quoficiente de inteligência (QI) de milhares de adultos e adolescentes dos Estados Unidos a suas atitudes.

Depois de analisar os dados da National Longitudinal Study of Adolescent Health e da General Social Surveys, Kanazawa encontrou também ligações entre o QI e o posicionamento político e a religião. O ateísmo e o liberalismo político foram apontados na pesquisa como atitudes de homens mais inteligentes.

O pesquisador disse à BBC que a fidelidade é um sinal de evolução da espécie. O homem fiel seria diferente do padrão “relativamente polígamo” que o gênero teve ao longo da História. Não trair seria, segundo a teoria de Kanazawa, uma novidade evolucionária a que os mais inteligentes estariam aderindo. Entre as mulheres, no entanto, essa conexão entre QI mais elevado e exclusividade sexual não acontece, segundo o estudo.

Realidade não é tão simples, diz psiquiatra

Para o psiquiatra Luiz Sperry Cezar, pesquisador do Hospital das Clínicas de São Paulo, no entanto, os resultados devem ser vistos com cautela. “O estudo não trata de questões de fidelidade no sentido estrito e 81% dos entrevistados nunca haviam sido casados”, diz. “Dizer que o QI é um fator determinante em relação a fidelidade é um exagero. Diversas outras questões referentes a personalidade são tão - ou mais - importantes que isso: impulsividade, tendência a busca pela novidade, capacidade de assumir riscos”, afirma.

Segundo o psiquiatra, não é possível afirmar que "é inteligente ser fiel" a partir dos dados coletados por Kanazawa, pois o método utilizado não visaria abordar esse tema com clareza. Na “Social Psychology Quarterly”, o artigo foi publicado com o título “Why liberals and atheists are more intelligent” (Por que liberais e ateus são mais inteligentes).

segunda-feira, 1 de março de 2010

Dois titãs do samba, duas homenagens e uma despedida

O samba dominou a trilha sonora da semana passada: escrevendo, a quatro mãos, um roteiro de rádio sobre Martinho da Vila, a convite de Eulícia (obrigada, querida!), e a triste notícia do falecimento de Walter Alfaiate.

Encontrei esses dois vídeos bem bacanas, para homenageá-los:

Alfaiate, com toda aquela elegância, cantando Sacode Carola, acompanhado do grupo Sururu na Roda:

Fonte: YouTube

E Martinho, com a deliciosa Canta, canta, minha gente:


Fonte: YouTube

domingo, 28 de fevereiro de 2010

Precisão

Após dias de pesquisa sobre Martinho da Vila, começamos, Eulícia e eu, a produzir os textos. Até que ela lembrou da frase certa de que precisávamos:

"Escrever é cortar palavras" - Oscar Wilde

é (só e tudo) isso!

O segredo dos seus olhos

El secreto de sus ojos - o vi em Buenos Aires, no ano passado, com Pauli.

Linda tarde, linda película, la mejor compañía!

Se há uma coisa que nossos irmãos argentinos fazem super bem, é cinema! (pero el fútbol es otra historia, Cris, no te hagas el piola!)

Concorrendo ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro - torçamos no dia 07 de março!

O páreo está duro: o peruano A teta assustada também é uma obra-prima, pura beleza e sensibilidade ( e "só" ganhou o Urso de Ouro em Berlim ano passado...). Fita branca, da Áustria, é um soco no estômago, daqueles que fazem a dor se espalhar lenta e irreversivelmente (lembra, Rogério?). Não vi ainda: o francês Um profeta, que acabou de ganhar o Cesar, prêmio daquele país. E o israelense Ajami, que parece ser o favorito, pelo teor politicamente correto.

Vamos, Argentina todavía!

sábado, 20 de fevereiro de 2010

Nós, Hipácias.

Texto de Frei Betto, enviado pela amiga Cristina Sales.


A DIFÍCIL ARTE DE SER MULHER

Hours concours em Cannes, um dos filmes de maior sucesso no badalado festival francês foi Ágora, direção de Alejandro Amenabar. A estrela é a inglesa Rachel Weiz, premiada com o Oscar 2006 de melhor atriz coadjuvante em “O jardineiro fiel”, dirigido por Fernando Meirelles.

Em “Ágora” ela interpreta Hipácia, única mulher da Antiguidade a se destacar como cientista. Astrônoma, física, matemática e filósofa, Hipácia nasceu em 370, em Alexandria. Foi a última grande cientista de renome a trabalhar na lendária biblioteca daquela cidade egípcia. Na Academia de Atenas ocupou, aos 30 anos, a cadeira de Plotino. Escreveu tratados sobre Euclides e Ptolomeu, desenvolveu um mapa de corpos celestes e teria inventado novos modelos de astrolábio, planisfério e hidrômetro.

Neoplatônica, Hipácia defendia a liberdade de religião e de pensamento. Acreditava que o Universo era regido por leis matemáticas. Tais ideias suscitaram a ira de fundamentalistas cristãos que, em plena decadência do Império Romano, lutavam por conquistar a hegemonia cultural.

Em 415, instigados por Cirilo, bispo de Alexandria, fanáticos arrastaram Hipácia a uma igreja, esfolaram-na com cacos de cerâmica e conchas e, após assassiná-la, atiraram o corpo a uma fogueira. Sua morte selou, por mil anos, a estagnação da matemática ocidental. Cirilo foi canonizado por Roma.

O filme de Amenabar é pertinente nesse momento em que o fanatismo religioso se revigora mundo afora. Contudo, toca também outro tema mais profundo: a opressão contra a mulher. Hoje, ela se manifesta por recursos tão sofisticados que chegam a convencer as próprias mulheres de que esse é o caminho certo da libertação feminina.

Na sociedade capitalista, onde o lucro impera acima de todos os valores, o padrão machista de cultura associa erotismo e mercadoria. A isca é a imagem estereotipada da mulher. Sua autoestima é deslocada para o sentir-se desejada; seu corpo é violentamente modelado segundo padrões consumistas de beleza; seus atributos físicos se tornam onipresentes.

Onde há oferta de produtos – TV, internet, outdoor, revista, jornal, folheto, cartaz afixado em veículos, e o merchandising embutido em telenovelas – o que se vê é uma profusão de seios, nádegas, lábios, coxas etc. É o açougue virtual. Hipácia é castrada em sua inteligência, em seus talentos e valores subjetivos, e agora dilacerada pelas conveniências do mercado. É sutilmente esfolada na ânsia de atingir a perfeição.

Segundo a ironia da Ciranda da bailarina, de Edu Lobo e Chico Buarque, “Procurando bem / todo mundo tem pereba / marca de bexiga ou vacina / e tem piriri, tem lombriga, tem ameba / só a bailarina que não tem”. Se tiver, será execrada pelos padrões machistas por ser gorda, velha, sem atributos físicos que a tornem desejável.

Se abre a boca, deve falar de emoções, nunca de valores; de fantasias, e não de realidade; da vida privada e não da pública (política). E aceitar ser lisonjeiramente reduzida à irracionalidade analógica: “gata”, “vaca”, “avião”, “melancia” etc.

Para evitar ser execrada, agora Hipácia deve controlar o peso à custa de enormes sacrifícios (quem dera destinasse aos famintos o que deixa de ingerir...), mudar o vestuário o mais frequentemente possível, submeter-se à cirurgia plástica por mera questão de vaidade (e pensar que este ramo da medicina foi criado para corrigir anomalias físicas e não para dedicar-se a caprichos estéticos).

Toda mulher sabe: melhor que ser atraente, é ser amada. Mas o amor é um valor anticapitalista. Supõe solidariedade e não competitividade; partilha e não acúmulo; doação e não possessão. E o machismo impregnado nessa cultura voltada ao consumismo teme a alteridade feminina. Melhor fomentar a mulher-objeto (de consumo).

Na guerra dos sexos, historicamente é o homem quem dita o lugar da mulher. Ele tem a posse dos bens (patrimônio); a ela cabe o cuidado da casa (matrimônio). E, é claro, ela é incluída entre os bens... Vide o tradicional costume de, no casamento, incluir o sobrenome do marido ao nome da mulher.

No Brasil colonial, dizia-se que à mulher do senhor de escravos era permitido sair de casa apenas três vezes: para ser batizada, casada e enterrada... Ainda hoje, a Hipácia interessada em matemática e filosofia é, no mínimo, uma ameaça aos homens que não querem compartir, e sim dominar. Eles são repletos de vontades e parcos de inteligência, ainda que cultos.

Se o atrativo é o que se vê, por que o espanto ao saber que a média atual de durabilidade conjugal no Brasil é de sete anos? Como exigir que homens se interessem por mulheres que carecem de atributos físicos ou quando estes são vencidos pela idade?

Pena que ainda não inventaram botox para a alma. E nem cirurgia plástica para a subjetividade.


Frei Betto é escritor, autor de “A arte de semear estrelas” (Rocco), entre outros livros.