segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Labuta

Ao abrir os olhos, era ainda noite. Mas o dia já começava. Na casa silenciosa, os sinais do ontem não tão distante: desordem na sala, pratos do jantar, poeira do chão de terra que entrara pela janela. Resolveria à noite.

Saiu de casa agasalhada e sentou-se no lugar de sempre da van. Viajou calada, meioacordada, meio-já-sem-sono. O sol raiou dentro do ônibus, para onde correu ao chegar na Central, mas não conseguiu se sentar. Devia ter vindo na van das quatro, pensou.

A dor nas varizes das pernas era sua companheira de viagem. As pernas, festejadas anos atrás no bar onde ia beber e dançar. As pernas, que enganchou nas do ex-marido naquela primeira dança, e só largou quando a polícia veio buscá-lo, numa madrugada em que dormiam abraçados.

Chegou ao edifício na zona sul suada e encasacada, com o sol já alto. O porteiro lavava a calçada sem molhar o uniforme. Deram-se bom dia, contaram as novidades, já velhos conhecidos de toda sexta-feira. Comentaram que a chuva viria no domingo e que o tomate subiu que foi uma beleza. Ele contou que o morador do 703 havia sofrido um enfarte na noite de terça, mas a ambulância, graças a Deus, chegara a tempo. Já havia saído da UTI, contara o genro que foi buscar algumas roupas no apartamento, e voltaria para casa no sábado à tarde.

Ela contou que desovaram um corpo na sua calçada na quinta de madrugada. O terceiro, desde que o comando mudou. Os vizinhos disseram que era um rapaz da rua de cima, mas ela não quis conferir corpo nenhum, nem deixou os filhos pequenos verem aquela tristeza.

Ele pediu desculpas pela indiscrição e perguntou o que era aquele troço no seu pescoço, que ela estava andando feito um robô. Ela disse que o médico do posto mandou usar, pela dor nas costas. Custou doze reais, veja que prejuízo! E indicou que ela fosse também ao médico dos nervos. Ela foi, no dia seguinte, obediente. Era jovenzinho, esse outro doutor, mas muito atencioso. Passou-lhe um remédio que dava um sono doido o dia inteiro e disse que ela deveria ir para a cama às nove da noite, para deixar de se sentir tão nervosa. Ela teve até vontade de rir, imagine, com tanta coisa para fazer quando chegava em casa... Mas se controlou, para o rapaz nao pensar que era deboche. E agora tinha que subir, já ia dar sete e meia.

A patroa dormia na cama de casal, com o edredom branco que ela alvejou, só os passarinhos lá fora de barulho no apartamento. O dia claro entrava pelo voile fechado.

Fez as coisas de sempre: roupa do varal, pia de pratos, comida estragada na geladeira, jornais da semana espalhados pela sala, ferro esquentando mal, mas não adiantava avisar. Quando já lavava o banheiro dos fundos, ouviu lá de dentro: “Beth, é você?”.

26.09.2009

6 comentários:

  1. Gosto desse texto, Pura Vida. E eu, que ha' anos so' utilizo muito raramente os servicos das Bethes da vida, passei a dar ainda mais valor ao trabalho delas. Sao verdsdeiras guerreiras! E de certa forma, e' porque elas existem, que as classes media e alta brasileiras podem ter o estilo de vida que tem. Enfim, ha' muito o que se falar sobre esse assunto. O fato e' que, hoje em dia, quando penso em ir ao Brasil de ferias, fico feliz em saber que Arlete (empregada de meus pais) vai estar la se esmerando na cozinha (e' uma excelente cozinheira!), preparando cada dia uma comida mais gostosa que a outra. E lavando e passando nossa roupa, limpando e arrumando a casa.... Acho um luxo so'!!
    QQ

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  2. É verdade, QQ - é um tema que me deixa inquieta também. E dá pano pra manga! Por um lado, é uma comodidade. Estabelecemos, inclusive, laços de afeto e cuidado com essas mulheres-guerreiras, que se tornam fundamentais para organizar nossa vida. Mas, por outro, esse serviço prestado continua sendo historicamente mal remunerado. Há um quê de perpetuação da dinâmica Casa Grande X Senzala no ar. Envolve culpa (por uma sensação de exploração disfarçada) e satisfação (pela ajuda que elas nos prestam). Parte da esquizofrenia tupiniquim! Uau, papo cabecésimo! Te quiero mucho!

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  3. Seja bem vindo este teu novo blog! Sejam bem vindas as intuições, sentidos e interpretações da vida que elaboras e compartilhas com todos nós. Vida longa, pura Vida!

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  4. obrigada, anônimo! mas quem é vc? bjs

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  5. Um camarada inexperiente nessa história de blog... que não tem conta nem no google, nem no livejornal, wordpress, etc, e que esqueceu de assinar em baixo: Daniel... Beijos!

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  6. bem que desconfiei... ;) obrigada pelas boas vindas! não se pode mesmo ser bom em tudo - e vc já se supera em várias áreas, tá de bom tamanho. continue me acompanhando! beijos!

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