terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Relações silenciosas

Ouvi a voz feminina ao longe, contínua, assim que repousei as sacolas de compras no chão.

Os números vermelhos no marcador marchavam em câmera lenta, 15, 14... 11... Eu os acompanhava com os ombros arreados e o olhar imóvel. 9, 8, 7... Parada no 5º andar por insuportáveis minutos. A voz se aproximava, veemente, enérgica. Pude dissernir, mesmo com os ouvidos exaustos: a mulher se queixava.

Quando a porta do elevador já se fechava atrás de mim, eles entraram. Ela fez uma breve pausa para dar boa noite, ele nem isso. Prosseguiu, então, seu relato ofendido:

- ... eu disse a ela que meu horário de trabalho terminava às seis, que não ficaria até mais tarde. Vou ficar trabalhando para a Vera e a Cris? Quando (enfatizou) elas estão atoladas, eu até vou lá ajudar, mas na maior parte do tempo nem chego perto, tem graça, né? Outro dia...

O rapaz olhava fixamente para o enorme celular iluminado, como se ali estivesse o enigma da vida e da morte, e ele precisasse, urgentemente, desvendá-lo. Pensei em como ter foco em duas coisas ao mesmo tempo não é o forte masculino.

- ...e o Jorge – eu já te falei do Jorge, né, aquele que é gay, mas é gente boa? – o Jorge também disse a ela: “Vera, se vira, tô ocupado agora!” e eu achei ótimo, pra ver se ela se toca, cara, fica no celular e na internet o dia inteiro, todo mundo se matando pra dar conta de tanta coisa nesse fim de ano, e ela lá, fazendo cera? Eu falei até pra Júlia, aquela que mora no prédio da tua tia Nena, lembra que contei?, eu falei assim: “Júlia...

O enigma do celular parecia mesmo complexo. Ele sequer a olhava de relance ou movia a cabeça afirmativamente, quando perguntado sobre algo. Fiquei imaginando por quanto tempo aquele monólogo perdurava. Quando havia começado? Eles vieram da garagem, pela escada, quando ingressamos, juntos, naquela breve (esperava eu) jornada. Chegariam também das compras de última hora para o Natal? Não, não tinham sacolas. Ele foi pegá-la no trabalho? Vinham da casa de algum amigo? Eram namorados? Casados? Moravam no prédio?

- mas a Júlia é uma boba mesmo, disse que não tinha reparado nada, "será mesmo?", me perguntou, "ela é tão na dela...", claro (mais ênfase), é na dela porque fica fazendo tudo, menos trabalhar. Cara, como é que pode?

Anos-luz nos distanciavam, naquele ínfimo quadrado: ele, absorto pelas teclas; ela, falando, verbo intransitivo; e eu, ali, jogada pelo acaso naquele maremoto verborrágico, em choque com pedras impassíveis.

- ... Cê tem que ligar pro Zé Luís, ela emendou, mudando de assunto, porque a Paloma disse que a mamãe não quer fazer a festa na casa do Jonas porque, primeiro, todo ano a gente faz lá...

De repente, ele saiu do estado de inanição em que se encontrava e, num gesto rápido e eficaz, abriu a porta do elevador para que eu saísse, permanecendo lá fora. Ela parou por um instante de falar, eu saí, agradeci, e enquanto seguia pelo corredor, ainda pude ouvir:

- ...e segundo, porque...

Até que a voz sumiu, abafada pelas paredes. Uma certa solidariedade aos homens brotou, não sei de onde.

O apartamento me esperava em silêncio, por sorte.

2 comentários:

  1. Muito bom! vc escreve mesmo bem...
    beijos

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  2. hahahha parece que vi a cena. na certa vi muitas cenas parecidas aqui no Rio. É hilário, parece coisa de filme. Você soube retratar hiper bem. bjs!

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